segunda-feira, 5 de abril de 2010

Madleia + ou – doida


CRÍTICA TEMPORADA 2010

Uma Medéia Pop e Kitsch

Por Bruno Siqueira

MADLEIA. Medéia. Vanderléia. MAD. Mais ou menos DOIDA. Madleia + ou – doida, o mais novo espetáculo de Carlos Bartolomeu, roteirizado e protagonizado por Henrique Celibi, já traz no título o sentido elementar da encenação: a mestiçagem, a transubstanciação, a brasilidade flagrada pelo viés do popular. Mas um popular além da teatralização do popular que os discursos hegemônicos, mesmo contando com menos seguidores agora, ainda insistem em manter. Não o popular domesticado, rural, pré-industrial. Mas o popular urbano, contaminado e transformado pela indústria cultural.

Do ponto de vista formal, o espetáculo não carrega nenhuma proposta revolucionária. Como diz o próprio encenador no programa da peça, a encenação é “arrancada do surrado ou do repetitivo”. Três são, porém, seus méritos, a meu ver.

A opção pelo brega, pelo melodramático, pela indústria do entretenimento como traços estilísticos faz com que os elementos da cena se harmonizem em prol de um efeito estético gratificante. O cenário e os adereços de Celibi se afinam muito bem com a proposta da encenação. O vermelho dominante remete ao pathos contido na tragédia grega, mas também, ao mesmo tempo, ao kitsch de alguns dos programas televisivos populares, com direito até a coraçãozinho de pelúcia.

O segundo ponto positivo do espetáculo consiste na sua mestiçagem. Há muito tempo já nos caiu a ficha de que a originalidade correspondia a um mito romântico, hoje difícil de se sustentar, senão por discursos ideologicamente comprometidos nas relações de poder. Nas tragédias clássicas, por exemplo, vê-se o dramaturgo bebendo na fonte dos mitos. O mérito artístico provinha na forma como os mitos eram focados, recortados, interpretados, renovados.

Qual a razão de se montar, nos dias de hoje, um texto clássico? No caso de Madleia + ou – doida, por que montar um espetáculo a partir de um motivo clássico? As grandes tragédias gregas lidam com temas ainda muito significativos para nós. No entanto, esses textos são significativos não pelo que significaram para os espectadores há mais de dois mil anos, mas pelo que significam nos dias de hoje. Ou seja, é a leitura contemporânea que dá sentido a um texto escrito há mais de dois milênios.

Por exemplo, em plena ditadura militar, Chico Buarque e Paulo Pontes, para além de esgotar o conflito individual de sua protagonista (Joana), fazem uma leitura política de Medéia em Gota d’água, ao ambientar a peça num complexo habitacional, a Vila do Meio-Dia, revelando as dificuldades sofridas pela população da periferia, retrato tão adverso da imagem próspera que o governo militar pretendia divulgar do Brasil.

A dramaturgia de Celibi em Madleia + ou – doida parte de Medéia e faz uma leitura carnavalizante do mito grego. O olhar do dramaturgo não se fixa nem na psicologia da personagem nem no viés político estrito que a peça carrega, mas na cultura hibridizante que transformará a tragédia de Eurípedes numa colagem de textos de diversas origens e de diversos matizes. Na peça, o dramaturgo grego convive com as seguintes personalidades: Chico Buarque, Paulo Pontes, Vanderléia, Roberto Carlos, Fernando Mendes, dentre outras. Claro que essa convivência se dá em termos de referências textuais.

Trata-se de uma paródia de Medéia, que dessacraliza a tragédia grega, inserindo-a numa cultura do entretenimento, sem, por isso, perder de vista a grande violência do amor, do abandono e do ciúme, temas subjacentes ao texto helênico.

O terceiro ponto alto do espetáculo é a atuação de Henrique Celibi. Seguro de seu trabalho, a ator dá vida a sua personagem numa interpretação vigorosa, bailando do lamento trágico, aos excessos melodramáticos e ao riso cômico, numa naturalidade própria apenas dos grandes atores.

Saliente-se também a participação de Daniel Silva, o qual, num excelente trabalho de expressão corporal, representou projeções da personagem Jasão e de forças místicas oriundas, possivelmente, da mente de Madleia. Suas aparições conferiram ao espetáculo grandes momentos de beleza plástica.

O encontro de dois grandes artistas, Carlos Bartolomeu e Henrique Celibi, resultou num trabalho instigante e representativo na trajetória artística de ambos, afinal Madleia + ou – doida é um espetáculo que descende das antológicas produções do Vivencial, grupo em que os dois participaram significativamente. Mas isso é assunto para outro texto...

Quanto ao espetáculo em foco, todos os artistas envolvidos estão de parabéns! Neste último sábado, no Marco Zero, a produção da Paixão de Cristo do Recife angariava milhares de espectadores; no Centro Cultural Apolo-Hermilo, Madleia + ou – doida reunia um público numeroso, que se deliciava com o trabalho produzido por Bartolomeu e Celibi. Diante de uma diversidade como a nossa, como conceber outra forma de cultura diferente da que foi oferecida pela encenação? É isto.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

DRAMATURGIA : JOÃO DENYS


FOTO DE DEUS DANADO DE JOÃO DENYS DIREÇÃO DE HERÊ AQUINO

FOTO DE ENCRUZILHADA HAMLET TEXTO E DIREÇÃO DE JOÃO DENYS



As palavras, nos escritos de João Denys, vêm marcadas pelo sol do sertão nordestino e por um sentimento de terra na alma, só possível nessa região em que o repente e a alta poesia andam de mãos dadas. De fato, é “um universo singular”, como diz Maria Helena Kühner em seu belo artigo, prefácio à edição em livro da peça “Flores D`América”, recentemente lançado em Recife. Prefácio que reproduzimos nesta edição de antaprofana, abrindo a coluna "Personalidades", para a divulgação de artistas e teóricos cujo trabalho represente contribuição ao desenvolvimento da arte dramática nacional. Caso evidente desse grande dramaturgo, ensaísta, encenador e professor de teatro, que é João Denys. Para melhor apresentá-lo aos que não o conhecem, aqui vai também um empolgado (mas nem por isso menos fiel ao original) retrato feito por Josmard Muniz de Britto, seu parceiro em algumas aventuras literárias e conterrâneo, pois nascido no mesmo chão poético. João Denys é um homem tranqüilo, mas com faísca nos olhos. Desses sujeitos cujo sorriso, sempre pronto a iluminar-lhes as faces, revela não ironia ou sarcasmo, mas genuíno encantamento pelas coisas do mundo. E é isso o que dizem seus textos dramáticos. Ainda que no horror da miséria, seja material ou espiritual (ou ambas, já que elas não gostam de se verem distantes), há alguma coisa de encantado, há alguma coisa pela qual a vida se justifica. Se justifica em palavras que transfiguram sonhos em realidade e tornam a realidade coisa superior, sempre ligada ao Divino. Mas, além da sua obra dramática, do seu trabalho como encenador (um dos principais do Nordeste), do ofício de ensinar, que desde 1986 pratica na UFPE, ressalta-se também o ensaísta. É de sua autoria um dos melhores ensaios sobre a dramaturgia brasileira publicado nos últimos anos: “Um Teatro da Morte”. Nele, João Denys analisa com extrema sensibilidade a obra de Joaquim Cardozo, procurando entender, como consta do sub-título da obra, a “tranfiguração poética do Bumba-meu-boi e desvelamento sociocultural na dramaturgia” desse poeta dramático tão injustamente esquecido, que é Joaquim Cardozo. O ensaio de João Denys não só faz justiça à grande arte de Cardozo, como se revela à altura em inteligência e engenho poético. Desse modo, ao abrir espaço a dramatugos e intelectuais do teatro brasileiro, pouco conhecidos fora dos seus redutos, ou ainda muito novos no pedaço, antaprofana orgulha-se em apresentar aos seus visitantes o poeta dramático, teórico e encenador potiguar, naturalizado pernambucano, João Denys de Araújo Leite.




Sebastião Milaré

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O Teatro é Necessário? - De Denis Guenoun


O cinema tendo se apoderado do imaginário do espectador, satisfazendo a seu desejo de identificação, qual seria, então, o lugar do teatro na cena contemporânea?Um tema que vem se propondo cada vez mais ao exame crítico moderno é odo estatuto do teatro no contexto globalizado e tecnocentrado da contemporaneidade e, nesse sentido, é valiosa a reflexão que este volume da coleção Debates, traduzido por Fátima Saadi, leva ao leitor de língua portuguesa. Trata-se de responder à questão: O Teatro é Necessário? Para tanto Denis Guénoun acompanha, ao longo da história do teatro, a formação e as modificações do conceito de identificação com o personagem, tanto por parte do ator quanto do espectador.Na Antigüidade, a mimese não supunha a identificação, que se esboça a partirda releitura renascentista da Poética de Aristóteles e encontra seu ápice nonaturalismo do fim do século XIX. Diderot, Stanislávski e Brecht são tomadoscomo marcos na discussão sobre a ilusão no teatro, redirecionada com osurgimento do cinema que, ao se apoderar do imaginário do espectador, satisfazendo a seu desejo de identificação, torna ainda mais evidente a vocação do teatro para o jogo, para o fazer compartilhado entre atores e espectadores,capaz de articular de modo produtivo a estética, a ética e a política.

Texto e imagem: estudos de teatro


Texto e imagem: estudos de teatro
Maria Helena Werneck e Maria João Brilhante (org.)
Texto e imagem: estudos de teatro é uma cooperação entre teóricos portugueses e brasileiros, os ensaios reunidos no livro procuram responder às novas perspectivas apresentadas aos estudos de teatro, pensando conceitos como teatralidade, performatividade, entre outros. Espetáculos de grupos brasileiros (como Vertigem, Oficina e Macunaíma) e de grupos portugueses (como O Bando) são alvos de análise, como mote para a reflexão crítica e teórica sobre a produção contemporânea.

domingo, 9 de agosto de 2009

MEMÓRIA DA CRÍTICA TEATRAL - VALMIR SANTOS (PARTE II)

Valmir Santos é jornalista. Autor de históricos de coletivos como Armazém Companhia de Teatro, Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, Parlapatões, Patifes & Paspalhões e Grupo XIX de Teatro. Integra o júri paulista do Prêmio Shell de Teatro. Cursa mestrado na USP. E foi repórter do jornal Folha de S.Paulo (1998-2008).

MEMÓRIA DA CRÍTICA TEATRAL - VALMIR SANTOS

Cerimônias de Despedida

Na adaptação para o teatro de “Por um Fio”, de Drauzio Varella, a força vem do texto original — um relato da convivência do médico com pacientes terminais

Por Valmir Santos

,A boa prosa do médico Drauzio Varella justifica as releituras frequentes acolhidas no teatro, no cinema e na televisão — Estação Carandiru, seu livro mais popular, por exemplo, ganhou versões em todas essas áreas. Agora é a vez de Por um Fio, que chega a São Paulo. A última fala da peça, dirigida por Moacir Chaves, traduz o espírito da obra: "O cavalo fica mais esperto quando sente vertigem na beira do abismo", frase de um dos pacientes terminais tratados por Drauzio.
Diante dessa força dramática, Chaves optou por transpor literalmente parte dos textos do livro para a cena. Nas 11 narrativas, o espetáculo apresenta as histórias de homens e mulheres cujas vidas ganharam outro significado após um diagnóstico sombrio. Com alguns, o médico partilha cerimônias de despedida; com outros, a cura. Os pacientes têm consciência da morte iminente ou da sobrevida — e qualquer uma transforma a visão sobre ser e estar no mundo.
O relato de um imigrante polonês é dos mais contundentes. Homem de negócios, casado, pai de quatro filhos, ele opera um tumor na perna, enfrenta nódulos nos pulmões, fica viúvo e namora uma moça 35 anos mais nova. Contraria os filhos e vive mais dois anos ao lado dela. Tempo de progressão da doença e de experimentar um sentimento amoroso que jamais tivera.
Na peça, como no livro, o ciclo fecha-se com Drauzio lembrando o tratamento e a perda do irmão dois anos mais novo, vítima de tumor maligno. O convívio cotidiano com a onipresença da morte faz com que Varella/Chaves abordem lateralmente alguns dilemas da triangulação paciente/familiares/médico em decisões urgentes quanto a procedimentos cirúrgicos.
OUTONO DA VIDA
Em termos formais, a direção de Chaves é convencional. Pouco recria em torno do que já existe na obra — daí que seja inescapável a opção pela narração em detrimento da representação. Para quem leu as histórias, paira a sensação de "ouvir o livro" por meio das vozes dos atores Regina Braga e Rodolfo Vaz, revezando-se na interpretação de Drauzio e dos pacientes. São presenças acanhadas, que não correspondem ao que eles podem proporcionar.A trilha ao acordeão ou ao piano suaviza as transições de um quadro a outro, e a cenografia de J. C. Serroni compõe um painel sobre o outono com árvores ressequidas e folhas caídas. São recursos de um espetáculo em que a ligação com o espectador se dá mesmo por meio de um texto que sublinha a vida ao tocar o seu contrário. No que se refere a Drauzio, revela sua capacidade de se emocionar com o distanciamento exigido pelo ofício de médico. No caso da peça, essa é uma virtude que não conseguiu ser reproduzida.

Valmir Santos é jornalista.