domingo, 26 de julho de 2009

CRÍTICA DE JEFFERSON DEL RIOS PARA REQUIEM

A esperança diante dos infortúnios existenciais
Réquiem revela ao público brasileiro Hanoch Levin, poeta que soube retomar o caminho de Chekhov.

Jefferson Del Rios

Réquiem, como se sabe, é uma peça musical para homenagem póstuma, geralmente durante a missa. Sua base é cristã, mas o termo latino tornou-se universal como prova essa peça de um israelense filho de judeus poloneses sobreviventes do Holocausto. Hanoch Levin (1943-1999) é o compassivo poeta dramático que soube retomar o caminho de Anton Chekhov (1860-1904) e guardar sua singularidade. O tema que desenvolve vem de três contos do autor russo que se dedicou a escrever sobre pequenos infortúnios existenciais. Para ambos, a vida no geral está longe de ser épica. No mais das vezes, é povoada por pessoas anônimas e banais, como o fabricante de caixões funerários desse enredo. Percebe-se o humor absurdo da história ao ouvi-lo reclamar da falta de mortos para que possa ganhar a vida (consta que Bach teria feito a mesma queixa quando lhe faltaram encomendas de músicas para mortos de posses).
O homem obscuro de Levin percorre caminhos desolados numa jornada com gente e episódios que o fazem pensar no sentido da vida. Sua tomada de consciência se dá, finalmente, diante de uma criança morta. Sim, é um réquiem, mas nele cabem fantasia, alguma graça, drama, risos ocasionais. Com tais elementos, jovens atores fazem um belo espetáculo sob a direção de Francisco Medeiros. Com o apoio do Centro da Cultura Judaica de São Paulo, é a primeira vez que se encena Levin no Brasil.
Esse dramaturgo de vida relativamente curta amplia o circulo dos escritores judeus que sabem tratar de forma profunda a questão do homem desenraizado, no espaço, tempo, e de si mesmo perante outras culturas. Os judeus da Europa Central viveram esse dilema expresso nos romances do grande Joseph Roth, cuja vida marcada por impasses está analisada com brilho por Luis S. Krausz em Rituais Crepusculares - Joseph Roth e a Nostalgia Austro-Judaica (Ed. Edusp).
Judaísmo, contudo, é aqui uma questão implícita. Levin não se apega a uma nacionalidade especifica - nem mesmo aos russos chekhovianos -, mas ao homem universal diante do cosmo e do cotidiano. Não há nomes, locais e datas reconhecíveis, mas a sempre relembrada e incontornável "condição humana". Com brandas palavras, permite o fluir da existência de gente descaminhada, prostituída, os esfarrapados de corpo e alma. Ao mesmo tempo, deixa passar um fio de esperança para todos eles. Sua dramaturgia se define na fala de Os Barões da Borracha, outra de suas peças: "Oh, este instante no teatro, quando as luzes da plateia já se apagaram e as luzes do palco ainda não se acenderam! E a plateia, sentada no escuro, esperando no silêncio, todas as expectativas, os sonhos todos de milhares de pessoas com um único foco, um único ponto na escuridão diante deles. Tenho a sensação de que tenho vivido este momento minha vida inteira, esperando no escuro."
Obra construída de semitons, o texto caiu nas mãos certas de jovens intérpretes que tateiam o palco com uma feliz descoberta. Estão ali em cena, disponíveis e intensos. Não há lances retóricos, grandiloquências, como se percebe em Chekhov e, agora, em Hanoch Levin. Reger essa partitura de subentendidos é tarefa para diretor experiente, e Francisco Medeiros faz a ponte entre gerações com seu elenco. A encenação tem o mérito de dominar o que é sépia, silêncio, apenas sonata, o que transparece na interpretação de Francisco (Chico) Carvalho, o fazedor de caixões, um talento tranquilo e firme. Em sintonia com ele estão André Blumenschein Dinah Feldman, Fabrício Licursi, Felipe Schermann, Priscila Herrerias e Fernanda Viacava.
Réquiem estabelece, assim, o clima de fantasia e quase otimismo que Levin manifesta ainda em Os Barões da Borracha: "Logo a cortina vai abrir, o palco será inundado com uma luz surpreendente e uma vida cheia de cores vai começar a fluir na minha frente. É, logo uma vida multicolorida vai surgir, amanhecer, uma vida magnífica nunca antes vista por ninguém."
É o instante em que a magia teatral transforma lamento fúnebre na paz do adágio.
Serviço
Réquiem. De Hanoch Levin. Centro Cultural São Paulo. R. Vergueiro, 1.000, 3383-3402. 3.ª a 5.ª, 21 h. R$ 10. Até 5/3

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