segunda-feira, 27 de julho de 2009

HAMLET(5) DIREÇÃO DE ADERBAL FREIRE FILHO

Discordo do consenso já criado pela crítica de teatro a respeito do Hamlet de Wagner Moura, em direção de Aderbal Freire-Filho. Há muitos problemas de encenação, e o enorme talento de Moura se perde pelas decisões tomadas. A maioria da platéia chega já tendo “adorado” a montagem e, pelo jeito, a crítica carente de novos marcos históricos se deixa levar pela aclamação. Mas não estou sozinho quando digo que as poucas qualidades não compensam. Shakespeare é tão grandioso que permite múltiplas versões, mas o texto continua lá, pairando sobre cada uma delas com a autoridade de seu gênio.
Nada tenho contra, por exemplo, as roupas modernas, a linguagem coloquial e o uso do vídeo com telão ao fundo, para reforçar a obviedade de que o próprio teatro é um dos temas da peça. Mas essa insistência em filmar Moura por todos os ângulos parece dizer que esse é o tema central ou único e, pior, termina por causar o efeito oposto: em vez de mostrar que somos todos atores, serve para endossar o fato de que no palco está o maior ator de sua geração. Na noite em que vi a encenação, sexta retrasada, era aniversário de Moura e ao final ele foi brindado com faixa e canto de parabéns e a presença do filho no palco. Estava ali, acima de tudo, uma celebridade de sua geração.
A tradução tem muitos achados; flui, cria e até acrescenta trocadilhos, jogos de palavra que Hamlet gosta de praticar. Em momentos fundamentais, porém, ela deixa a desejar. No monólogo mais famoso da literatura, a frase “thus conscience does make cowards of us all” se tornou “o pensamento nos faz covardes”. Pensamento e consciência não são exatamente a mesma coisa, e esta diferença era cara a Shakespeare; afinal, para Hamlet, a consciência nasce do medo do que vem depois da morte, “the undiscovered country” (o país indescoberto, melhor do que o “desconhecido” usado na montagem), e nos deixa oscilando entre pensar e agir, entre entender e enfrentar.
É exatamente essa oscilação que desaparece no Teatro da Faap. Os solilóquios parecem pausas no meio de uma grande e persistente gritaria. Moura berra e sapateia a cada cinco minutos; transpira e cospe aos cântaros; salta, corre, toca os outros efusivamente o tempo todo. Os momentos de reflexão ficam sem peso, ainda que em média ele saiba dizê-los. É claro que Hamlet é alguém que exagera sua suposta loucura para que assim possa levar adiante seu plano de ver estampada nos rostos de seu tio e sua mãe a verdade sobre a morte de seu pai. Mas ele seria o primeiro a lembrar que a loucura não se agita desse modo sem parar, até porque levantaria a dúvida dos outros sobre sua veracidade.
Assim, o que há de melancólico em Hamlet não permanece; ele desfila uma energia que não combina com isso. Para piorar, o restante do elenco não funciona. Tonico Pereira como o rei Cláudio não tem nada da pompa que Hamlet tanto satiriza, além de esquecer muitas passagens do texto e pronunciar “bões” e não “bons”. A loucura de Ofélia, que serve de contraponto para que vejamos o método que existe na de Hamlet, se estende demais, numa colagem de canções brasileiras. E a dupla Rosencrantz e Guildenstern parece Oscarito e Grande Otelo, como se não pesasse a menor culpa sobre a traição ao amigo. A tragédia fica encoberta por uma vasta fumaça de piadas e trejeitos.
Essa necessidade de acentuar o humor e a ação da peça, talvez por medo de entediar a platéia com o texto elaborado e metafórico de Shakespeare, pode ser o ponto a partir do qual todo o conceito da encenação desmoronou. Fazer um Hamlet mais informal e acelerado, muito brasileiro em suas demonstrações afetivas, poderia dar certo. Mas quando vemos que na parte final da montagem os atores já nem olham um para o outro enquanto falam, intermediados pelo vídeo, nos damos conta de que teatro sem conversa – “uma tábua e duas paixões” – perde a luz, mesmo que tenha o movimento. Achar o ponto é tudo.

Por Daniel Piza colunistado jornal O Estado de S. Paulo

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