terça-feira, 28 de julho de 2009

DRAMATURGIA E SEXUALIDADE(S) - TRUPE DO BARULHO

Genet processado e carnavalizado: o humor popular de As Criadas... Mal Criadas

Por Bruno Siqueira

Em tempo de irremediáveis hibridizações culturais, como o nosso, fica cada vez mais delicado tratar do qualificativo popular quando relacionado à cultura. Contra a fragmentação das identidades estáveis, a elite cultural pernambucana ainda insiste numa concepção de popular pretensamente verdadeira, mas que já se revela, hoje, um discurso político e ideologicamente interessado em construir sentidos particulares, que interfiram nas nossas representações do povo. Com dezesseis anos de estrada, a Trupe do Barulho é um grupo teatral pernambucano, popular, freqüentemente discriminado, contudo, pelos que garantem conhecer o teatro e a cultura do povo.
Em janeiro de 2006, apresentou ao público recifense seu último trabalho, As Criadas... Mal Criadas, paródia escrachada de As Criadas, um dos textos mais conhecidos e montados do dramaturgo francês Jean Genet. Dirigido por Manoel Constantino e com texto de Luiz de Lima Navarro, o espetáculo se mantém em cartaz no Teatro Armazém 14, com sucesso absoluto de público.
Toda a densidade trágica presente no texto de Genet foi liquidificada, processada e carnavalizada. Do original francês ficaram alguns poucos signos, como o nome das personagens – Clair (no original francês, Claire), Solange e Madame – e o motivo central: duas criadas almejam a morte da patroa. Na paródia, a Madame, interpretada por Beto Café (que substituiu Bobby Mergulhão, intérprete na primeira fase da montagem), concorre ao título de “Miss Traveca 2006” e é alvo da inveja das duas criadas, representadas por Flávio Luiz (Clair) e Ricardo Neves (Solange). A todo instante, as criadas tramam maldades e se valem de magias para impedir o sucesso de sua senhoria. O desejo de ambas é se tornarem herdeiras naturais da patroa e, conseqüentemente, “Madames”.
A exemplo da Commedia dell’Arte, o texto aqui é um pretexto para a performance dos atores, que usam do histrionismo e do improviso para fazer acontecer o espetáculo. Se convenientemente analisada, a peça nos autoriza compreender a cultura cômica popular de milênios. A concepção estreita do cariz popular e folclórico da cultura, herdeira do idealismo nacionalista-romântico, parece não levar muito em conta a cultura específica da praça pública e o humor popular em todas as suas manifestações (o leitor arguto perceberá no meu ponto de vista ecos do pensamento de Bakhtin, na clássica obra Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento; vale conferir).
O humor popular cruza com as representações dos festejos carnavalescos e, como esses, oferece uma visão do mundo e das relações humanas decididamente não-oficial. Nessa perspectiva, o popular não consegue se acomodar à identidade oficial que nossa política cultural vigente insiste em impor. Em As Criadas... Mal Criadas, o caráter não-oficial já começa pela referência explícita ao mundo gay, esfera ainda marginalizada em nossa sociedade. Num clima carnavalizante, o espetáculo promove o contato livre e familiar entre atores e público, valores oficiais e não-oficiais, cultura gay e heterocentrada. Tendo em vista isso, centrarei meu comentário em alguns aspectos da montagem.
A encenação de As Criadas... Mal Criadas parece-me uma grande celebração a Príapo, deus do falo. Os signos que se reportam ao falo são abundantes no espetáculo. Por exemplo, já na abertura, irreverentemente travestidos, Jô Ribeiro e Beto Café recebem o público e, sob o pretexto de vender o programa da peça, procuram deixá-lo à vontade, por meio de brincadeiras muitas vezes grosseiras. Mas, como no carnaval, o riso grosseiro se torna, aqui, instrumento de interação festiva, de forma que, se muitos espectadores ficam de início constrangidos, terminam logo entrando no jogo e na atmosfera do espetáculo. No dia em que vi a peça, enquanto Jô Ribeiro fazia comentários burlescos da gente da platéia, aludindo, inclusive, ao tamanho do pênis dos homens, Beto Café, percorrendo cadeiras e arquibancadas, vendia os programas, gritando “quem vai querer?” e roçando maliciosamente a pelve no ombro das pessoas.
Um segundo exemplo: após o terceiro sinal, Aurino Xavier, em seu famoso personagem Chupa Engole (referência explícita à felação), entra pela platéia, sobe ao palco e, como num show de calouros, convoca três rapazes do público, os quais são escolhidos, a contragosto dos mesmos, pelos dois atores que iniciaram o espetáculo. Três rapazes bonitos, apalpados (inclusive em seus órgãos genitais) e postos em situações deliciosamente divertidas.
Assim como no gesto, o componente fálico figura no vocabulário dos atores, no uso abundante de termos de baixo calão, referindo-se, as mais das vezes, ao baixo-corporal – cu, boceta, rola etc. Também encontra-se presente o falo nos adereços cenográficos, como não podia deixar de ser, já que o palco representa o cômodo de uma “traveca”. Assim, vale menção a paródia grotesca da escultura de Michelangelo, em que um Davi anão encontra-se representado realisticamente; e o telefone em formato fálico, na mesinha da Madame.
Os elementos fálicos convergem para um falocentrismo, o que explica, talvez, o sucesso massivo dessa peça. O conteúdo gay do espetáculo não chega a ferir o falocentrismo do público. Ao contrário das gay plays (peças gays), que procuram buscar uma identificação com a platéia através da forma gay de sentir e ler o mundo, n’ As Criadas... Mal Criadas não há, a meu ver, uma preocupação em levantar bandeira à causa gay. Tudo é carnavalizado, tudo é misturado, apesar de ser, vale destacar, a afetação gay o objeto de riso numa platéia que, majoritariamente, partilha de valores androcêntricos, masculinos, hetero-orientados.
Duas observações sumárias acerca do humor popular. Sabemos, desde Aristóteles, que uma das hipóteses prováveis da origem da comédia é ter sido ela derivada dos rituais ao deus Príapo. Cerimônias de caráter absolutamente popular, esses ritos eram eivados de brincadeiras, ditos chistosos, comportamentos licenciosos. Nessa esteira, a Trupe do Barulho faz comédia popular no sentido mais filosófico do termo. Também, desde os gregos, o travestismo era um elemento propiciador do riso na comédia. A Trupe do Barulho, por sua vez, explora esse artifício tão popular de arrancar da platéia o riso. Curioso e interessante em seus espetáculos é ser a cultura gay o vetor temático dominante; e ser justamente esse o objeto de apreciação de um público popular.
Ao contrário, porém, das comédias clássicas e das farsas populares, As Criadas... Mal Criadas, como outros espetáculos da Trupe, transitam pela vereda do teatro ligeiro, particularmente do besteirol, que visa tão somente ao entretenimento, não se comprometendo, em princípio, em levantar pelo riso questões ditas “sérias”. Daí o efeito espetacular constituir toda a razão da peça; daí, particularmente, a necessidade de atores experientes nessa linguagem teatral e, principalmente, no trato com o público.
Nesse ponto, a Trupe, ao longo de seus dezesseis anos, já deu mostras de qualidade. Dos mais antigos e maduros – Jô Ribeiro, Aurino Xavier e Flávio Luiz – aos mais novos – Ricardo Neves e Beto Café, todos sustentam e conduzem satisfatoriamente o espetáculo. Basta ver a resposta festiva do público para constatar isso. Além do mais, contribui para o divertimento um estilo de interpretação inspirado no trabalho do palhaço. Maquiagem exagerada, tipos burlescos, caras e bocas são elementos do palhaço que sempre encantaram o público no circo, uma atividade expressiva em nossa cultura popular. A agressividade do humor debochado e, muitas vezes, obsceno, convive com a inocência e ingenuidade do estilo clownesco, numa unidade expressivamente barroca.
O cenário e o figurino de Henrique Celibi são muito coerentes com a proposta da encenação e com o perfil estilístico da Trupe. Egresso do Vivencial Diversiones, grupo que marcou a cultura underground em Pernambuco, e do qual a Trupe do Barulho é devedora, Celibi concebe trajes e adereços de baixo custo, valendo-se de materiais reciclados e de muitas cores. Com isso, imprime ao visual um traço carnavalesco, que só vem a reforçar meu ponto de vista sobre o popular no espetáculo em questão.
As Criadas... Mal Criadas é puro entretenimento popular. Nosso meio teatral, de forma geral, ainda compartilha do sentimento sagrado diante da arte, o que explica, talvez, o fato de a Trupe, mesmo com sucesso de público (ou justamente por isso mesmo), pouco ser apontada como um grupo sério. Em última análise, acredito que a discriminação quanto a esse tipo de trabalho se deva ao fato de a Trupe fazer concessão ao gosto popular. Julgado necessariamente como superficial, o “vulgar” (de vulgo, povo) costuma ser preterido pela elite cultural, a não ser que se reproduza o modelo criado por nossas representações restritas e idealistas do povo. Definitivamente, esse não é o caso da Trupe do Barulho.
Deve estar claro, a meu ver, que nosso espaço cultural abriga, gostem ou não, inúmeras tendências. O público é muito heterogêneo e cada indivíduo busca o que proporcionará para si uma prazerosa experiência estética. Uns alcançam-na com o delírio dionisíaco de Zé Celso nos Sertões; outros, com a atmosfera armorial do Auto da Compadecida; outros, com o humor carnavalizante da Trupe do Barulho. Há espaço para todo tipo de público. Hierarquizar esses trabalhos em nome de uma pretensiosa noção de verdade ou de qualidade artística denuncia, hoje, uma atitude de poder, que merece ser discutida sempre.
A propósito da identidade artística, fecho meu artigo com estes versos muito contemporâneos do artista estadunidense, Carl Andre, em seu poema Questions and Answers:

2.What is art?A. Art is what an artist says is artB. Art is what a critic says is artC. Art is what an artist makesD. Art is what makes money for an artistE. Art is none of these things, some of these things, all of these things
(2. O que é arte?)A. Arte é o que o artista diz ser arteB. Arte é o que o crítico diz ser arteC. Arte é o que um artista fazD. Arte é o que dá dinheiro a um artistaE. Arte é nenhuma dessas coisas, algumas dessas coisas, todas essas coisas

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