segunda-feira, 27 de julho de 2009

HAMLET (VI) DIREÇÃO DE ADERBAL FREIRE FILHO

Interpretação histriônica

Por Daniel Schenker

Hamlet, na versão de Aderbal Freire-Filho, caminha na contramão da chamada peça de época. O texto de William Shakespeare se torna um veículo privilegiado para o diretor lançar questões pertinentes a respeito do teatro contemporâneo. Esta perspectiva desponta, sobretudo, na passagem em que o personagem-título, ao confrontar a mãe, Rainha Gertrudes, e o tio, Rei Claudio, com a sua peça, faz uma série de indicações aos seus atores. Hamlet pede a eles “que não declamem, mas busquem conciliar um registro sóbrio com vitalidade, que ajustem a palavra à ação e vice-versa para, assim, alcançarem a medida do natural porque o teatro é o espelho da natureza”. Moura fala este texto olhando para os espectadores. Não à toa.
Além de sublinhar pontos precisos do trabalho do ator, como o ajuste entre palavra e ação, Hamlet/Moura aborda o poder desestabilizador do teatro sobre o público. Basta lembrar que, na peça de Shakespeare, o teatro é ressaltado como uma manifestação artística capaz de empreender um desmascaramento – da trama arquitetada pelo Rei Claudio para tomar o poder. Coerente com esta perspectiva, Aderbal investe num teatro cujas engrenagens estão a descoberto; um teatro que estabelece e assume códigos com a plateia.
Na interessante cenografia de Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque, apenas a projeção de imagens registradas por uma câmera no instante da apresentação é elemento questionável. Já os figurinos de Marcelo Pies demonstram sintonia com a proposta da montagem, pela opção por trajes contemporâneos e por reforçarem a ideia de virar o estabelecido pelo avesso.
A atuação de Wagner Moura sobressai em meio ao elenco. A busca pelo natural pregada por Hamlet é apenas aparentemente negada pelo ator, que adota o registro histriônico para, na verdade, marcar a encenação arquitetada pelo protagonista para trazer a verdade à tona. É como se sublinhasse de propósito as engrenagens da representação, em vez de utilizá-las de maneira alienada. O Hamlet de Wagner Moura extravasa por meio de gestos largos e enfáticos, dispara falas revestidas de deboche, sem perder de vista a concretude e a contundência com que pronuncia as palavras, e esfrega e entrelaça as mãos de modo quase tão ofegante quanto o som de sua respiração.


Coloquialismo compromete
Por Eliana Pibernat Antonini

Frágil sempre será o limite entre realidade e representação, entre o ser e o não ser de Shakespeare. Inspirados, quem sabe, no eterno enigma proposto pelo autor inglês em sua obra imortal Hamlet, autores e atores dão seu testemunho sobre a fragilidade da ideia de verdade, reafirmada no sucesso de público da adaptação contemporânea assinada por Aderbal Freire-Filho. Resgatada pela tensão entre o real e o ficcional, oferecendo um belo e raro estudo de intertexto, a montagem atinge o ápice da visão contemporânea na interpretação de Wagner Moura.
Mesmo com um elenco de inegável talento, Hamlet é um espetáculo de e para um dos nossos mais promissores atores brasileiros, sucesso de mídia e crítica. Mas, aos 31 anos, é somente e comprovadamente um bom intérprete. Perde-se, porém, na excessiva contemporaneidade que tenta construir, no excesso de trejeitos e ao mostrar um Hamlet muito próximo de sua identidade. São raras as vezes em que a plateia esquece da imagem do ator para se ver diante do clássico personagem. Ao usar de menor elocução, trabalhar o viés cômico na dualidade do trágico, o ator recupera o drama medieval sem a fluidez que se viu em Diogo Vilela, por exemplo, que remetia, na época, fim dos anos 90, à interpretação magistral de Sérgio Cardoso, em 1956.
Aliás, pode-se dizer até que o excesso de coloquialismo compromete um pouco, apenas um pouco, a real(?) dimensão trágica do texto. Pois há um elemento fulcral na obra shakesperiana que Wagner Moura ainda não consegue atingir, qual seja a de tangenciar a atitude típica do melancólico, com seus raros toques de poeticidade, que são a gênese da obra em questão. Como disse Décio de Almeida Prado ao comentar a montagem protagonizada por Cardoso: “Todos esses anos não se passaram em vão!”. Construir o principe dinamarquês, tão mergulhado no luto e na fantasmagoria, entre imagens de simulacros precisos, exige do ator um certo tempo. Tempo de experiência, tempo de vivência. Tempo realmente trágico onde se assimila a arte de imitar e de construir, ao vivo, seus próprios simulacros.
Tudo isso cobra da construção da personagem não só dedicação, múltiplas leituras (onde Moura se esmerou), mas outra vivência lembrada pelo próprio Shaskepeare através das falas de Lartes. Nosso corpo ao crescer não ganha só volume e músculos: “O templo expande-se e também se alarga o espírito e a alma com seu culto interior”.

Narrativa é habilmente clara

Por Rodrigo de Almeida

Para ser justo e enfático: Wagner Moura é o melhor ator brasileiro revelado nos últimos 10 ou 15 anos. Com o mérito adicional de o atributo valer igualmente para o cinema, a TV e o teatro. Encarna bem, com seu ar de sujeito comum e boa praça, os múltiplos papéis que tem assumido, sempre com profissionalismo, talento, esforço e carisma. Tem de quase tudo aí - o humor adolescente, a tragédia de denúncia, o romance de herói, a rudeza de herói sem caráter, construções notáveis para alguém mal saído dos 30. Essa combinação, rara entre atores (ainda mais entre atores jovens), aparece no seu Hamlet, ora de maneira sutil, ora escancaradamente. E com ele o ator triunfa mais uma vez.
O Hamlet que estreia agora no Rio é o Hamlet da geração de Wagner Moura. Continua, claro, como o personagem-síntese de William Shakespeare, a quem o cânone de Harold Bloom se referiu como o papel mais importante da literatura para teatro. Mas, com a criação de Wagner Moura e a graça da direção de Aderbal Freire-Filho, troca-se a melancolia pelo deboche, a grandiloquência pela simplicidade, a reverência a Shakespeare e a seu personagem pela economia na cenografia e despojamento nos figurinos. A composição de Moura faz do seu príncipe menos o intelectual melancólico e mais o jovem irado, perplexo e... juvenil. Ator e diretor, no entanto, mantêm o status do mundo adulto com a força implacável dos devaneios dos monólogos.
Nenhum conflito visível que não esteja centrado no desempenho do ator central. A intriga, complexa, é posta para andar de maneira mais clara possível. São traços de quem deseja ir ao ponto – nada mais próprio a estes tempos. Eis uma casca de banana armada pelo próprio espetáculo. Há trocas arriscadas, das quais a montagem escapa quase sempre. Quase sempre. Levam, por exemplo, a alguns excessos histriônicos, a interpretações disformes e a incompatibilidades dramáticas (o Rei Cláudio perdeu, além da majestade, a malvadeza e o poder de amedrontar, heresia para um usurpador).
Heresias assim não turvam o brilhantismo de Moura. Ser tão bom é seu próprio risco: sem se perder embevecido pela vaidade, ele seguirá colecionando triunfos.

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