segunda-feira, 27 de julho de 2009

NEWTON MORENO - DRAMATURGIA E SEXUALIDADE(S)

Newton Moreno: teatro e homoafetividade

por Bruno Siqueira

Marcada pelos processos de globalização, pelos trânsitos migratórios e pelos hibridismos culturais, a contemporaneidade tem vivenciado, como nunca antes, uma tomada de voz por parte dos grupos sociais que sempre estiveram à margem da história, das decisões políticas, dos discursos hegemonicamente significativos. Dentre esses grupos, os GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais). No campo da cultura, a arte queer, ou homo arte, busca exprimir referências que promovam a identificação da comunidade gay (oprimida por modelos heterossexuais)
e, concomitantemente, fomentadora de umadiscussão, de ordem cultural, a partir do ângulo da margem.
Sob esse viés se desenvolve boa parte da dramaturgia de Newton Moreno, a qual vem recebendo acolhedoras críticas nos lugares do Brasil por onde vem passando. Pernambucano, Newton Moreno graduou-se em Artes Cênicas pela UNICAMP e, desde 1990, vive em São Paulo. Começou a escrever para o teatro e dirigiu o espetáculo a partir de seu próprio texto, Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada (2000). Apesar de não se restringir ao tema, o homoerotismo é uma constante em seu trabalho dramatúrgico. Além de Deus Sabia de Tudo..., transitam nesse mesmo universo discursivo as peças Dentro (2002), Agreste(2004), The Célio Cruz Show (2005).
A partir de 2000, a produção cênico-dramatúrgica brasileira, cada vez mais conjugada, tem se mostrado multifacetada e multidirecionada. É nesse contexto que surge a dramaturgia de Newton Moreno, muito prematura ainda, mas já fincando bases sólidas na história do teatro brasileiro. Seu trabalho encontra-se em processo de formação, de maneira que não podemos ainda tecer a seu respeito considerações mais ou menos sintetizadoras. Em razão disso e dos propósitos deste artigo, será focalizada uma de suas peças, Dentro, a fim de salientar os traços de uma estilística queer e as marcas da contemporaneidade nessa dramaturgia.
Em Dentro, o dramaturgo pretendeu criar um experimento tomando como referência a filosofia da Body Art, espécie de arte visual performática em que o corpo do artista é utilizado como suporte ou meio de expressão. Como criação conceitual, a Body Art é um convite à reflexão, podendo o espectador atuar de forma passiva, mas também como voyeur ou agente interativo. O universo teórico dessa arte estimulou a concepção dramatúrgica de Moreno, apesar de, estritamente, a peça não se inserir nesse tipo de manifestação artística. Trata-se de uma referência, uma vez que, em Dentro, o discurso amoroso da personagem se desenvolve durante a prática de um ato erótico que age, de forma não-convencional, sobre a “carne” do parceiro, buscando a transcendência mediante o físico (concreto), o interior do outro (daí o título da peça); a partir de sua superfície corpórea.
A ação se passa ao longo de um ato de fist-fucking, num curto período de tempo. Para quem desconhece o termo, consiste num ritual praticado tanto por homens quanto por mulheres, em que há penetração, da vagina ou do ânus, pelo punho, podendo chegar ao ante-braço.
Duas são as personagens presentes na peça, que não dialogam no sentido estrito da palavra, ou seja, não há no palco uma troca verbal. A fala da personagem Homem mistura elementos líricos (quando se realça a força expressiva/emotiva da linguagem) com a narrativa de fatos passados, quando a personagem viveu sua inesquecível história erótico-amorosa com Binho. A fábula é trazida como objeto épico, narrativa dos fatos distanciados do momento presente da ação dramática. E é justamente essa fábula que se torna o veículo para a performance do ator que, por ventura, venha a desempenhar a personagem.
A segunda voz, apesar de conter traços épicos, funciona como expressão lírica, semelhante a uma das funções desempenhadas pelo coro nas tragédias gregas. Ou melhor, é uma voz que interrompe a narrativa oferecida pelo Homem para exprimir, liricamente, um fluxo de sentimentos amorosos. Por outro lado, as interrupções da personagem Rapaz compreendem um procedimento épico, por duas razões complementares: propõem um distanciamento do que está sendo narrado e, ao mesmo tempo, comentam, por meio de uma locução lírica, as emoções vividas pelo Homem. Objeto epicamente trabalhado, a fábula assim se resume: num passado remoto, o Homem brincava com seu amigo, Binho, de “pôr o dedo no seu cu [no “cu” de Binho]”. O Homem, que nunca tocara outro sexualmente, se apaixona por Binho e começa a pagar ao garoto para fazer o fist-fucking. Binho usava o dinheiro recebido para comprar presentes para si e para sua namoradinha preferida. Pelo que fica suposto no relato, os encontros íntimos entre os dois, Homem e Binho, duraram algum tempo. Logo depois, eles perdem contato um do outro. O Homem diz ter procurado Binho durante anos. Finalmente o encontra, já com 35 anos de idade, numa esquina escura, “zonzo de crack”. Propõe a Binho pagar-lhe um fist-fucking e termina chorando, sem tocar no objeto de seu amor. Binho ergue as calças e não percebe que o Homem nada fizera. Caminha trôpego para dentro da noite. O Homem fica só.
O ritual de fist-fucking, presente na cena, contém um valor simbólico merecedor de atenção. Antes de mais nada, o punho (ou a mão), com o qual o Homem penetra seu parceiro sexual, assume evidentes conotações fálicas. Simbolicamente, o punho assume os seguintes valores em nossa sociedade: atividade, domínio e supremacia. Em Dentro, o gesto do Homem com relação ao Rapaz consiste numa tomada de atitude. É ele quem paga pelo sexo; é ele quem quer se satisfazer da forma como lhe apraz. Vê-se que constitui uma tomada de posição masculina, conforme a ideologia burguesa ainda vigente. Dessa forma, ao agenciar e centralizar os signos da cena, o ritual de fist-fucking marca um gesto do sujeito Homem. Ao mesmo tempo, o ato do fist, tido como agressivo e violento, implica um troca de muita confiança e cuidado com o parceiro. Essa ambivalência é relevante na construção da dramaturgia. A personagem é referida como Homem, age, simbolicamente, como homem e vivencia a homoafetividade e o homoerotismo. Não que a peça, como um todo, jogue com a inversão satírica, mas ela aponta (ou deixa brechas para isto) para as formas diversas que o homem pode vivenciar sua sexualidade.
A nosso ver, um aspecto torna o discurso da alteridade, na peça, mais eficiente do ponto de vista político. Ao optar pelo fist-fucking como signo agenciador da cena, o texto de Newton Moreno não dispõe a questão como algo sujo, fétido, objeto de reprovação. Pelo contrário, o dramaturgo aposta na liricidade do “grotesco”, opção sustentada por muitos dos escritores a quem Newton Moreno se mostra afiliado, dentre eles, Jean Genet, na França, e João Silvério Trevisan, no Brasil. O lirismo assume tons grandiloqüentes. Ora excessivo, ora kitsch, o estilo constrói a atmosfera lírica da peça de Moreno, na exposição, sem pejo, de uma voz masculina que confessa seu amor profundamente nostálgico por um homem.
Se do ponto de vista das “belas letras” esse lirismo pode parecer excessivo, imaturo, com imagens que apelam para o lugar-comum, do ponto de vista cênico proporciona um efeito impactante, sobretudo quando a leveza simbólica e romântica das imagens contrasta com o naturalismo da cena do fist-fucking. A alta literatura, nesse contexto, deixa de ser condição sine qua non. O que vale, aqui, é o efeito cênico provocado pelo choque entre a expressividade romântica e a referencialidade da ação naturalista, entre o caráter físico e metafísico do amor. O kitsch é concebido como um dos elementos que fazem parte daquele tipo de ambientação construído pela peça; um componente possível e relevante. Um pouco do que se entende como paraliteratura, caracterizada, nesse caso, como uma poética de apelo fácil aos sentimentos, usando como ingrediente imagens que expressem o transbordar do amor e da paixão. Lembremos que o poeta Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, já chamava a atenção do caráter “ridículo” das cartas de amor; no entanto, admite, “Só as criaturas que nunca escreveram/ Cartas de amor/ É que são/ Ridículas”. Adaptando ao contexto da peça Dentro, a expressão do amor, de tão sincera, pode parecer, aos olhos críticos severos, ridículas.
Sem categorizar os sujeitos de homossexual e heterossexual, o discurso masculino na peça se apóia nas vivências homoafetivas profundas para estabelecer uma nova ordem no imaginário masculino: o sexo e o amor estão entranhados, de tal maneira que é preciso “rasgar a carne” para se alcançar o “coração”. Pela via do ânus, pode-se alcançar o coração do outro: eis a síntese que o texto parece propor. Em outras palavras, a persecução do amor se torna um imperativo existencial, daí ser válido qualquer meio para alcançá-lo. No caso da peça, o caminho, para tanto, não é ortodoxo. O que se propõe é: o amor que se processa pelo ânus, este amor de aberração, pode alcançar o coração.
Assim, sem querer qualificar dessa forma a vivência homoerótica, podemos reconhecer aí um de seus traços. A “carne” e o afeto não podem ser desvinculados: são faces da mesma moeda. Vê-se que esse tipo de visão de mundo vai de encontro à ideologia judaico-cristã, dicotômica, que dissocia a alma (de onde proviria o afeto) da carne, como se fossem duas categorias impermeáveis entre si. Essa visão dicotômica converge com aspectos ideológicos da moral burguesa, cujas representações reforçam, por um lado, a relação “masculino” vs. “carne” e, por outro, “feminino” vs. “afeto”. A arte romântica, de certa forma, contribuiu para o estabelecimento desse sistema de crenças. A vivência homoerótica expressa na peça propõe um salto qualitativo desse sistema de crenças burguês a uma concepção mais abrangente e complexa da afetividade masculina. Por se inscrever numa vertente dramatúrgica contemporânea da conjunção texto-cena, deverá a produção de Newton Moreno ser apreendida sob ângulo diverso do que costumam enfocar os estudos literários ortodoxos. Além disso, é uma dramaturgia que trabalha a alteridade de forma espontânea e vigorosa, contribuindo, assim, para as discussões sobre estética, cultura masculina e realidade queer.

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