terça-feira, 28 de julho de 2009

DRAMATURGIA E SEXUALIDADE(S) - VIVENCIAL DIVERSIONES

O palco da subversão pernambucana: Vivencial Diversiones e a cena tropicalista

por Rodrigo Dourado

Há pouco mais de 30 anos, Pernambuco foi palco de uma experiência teatral que mudou radicalmente o panorama cênico do estado. Foi no ano de 1974 que, em Olinda, surgiu o grupo mais subversivo do tablado pernambucano, o Vivencial Diversiones, trupe que ousou afrontar a hegemonia armorial e lançar um brado tropicalista e homossexual do topo da acrópole. Em verdade, o Diversiones foi o grande responsável pela importação do ideário tropicalista para a cena pernambucana. Ele rompeu com os padrões estéticos do teatro que se fazia no Recife/Olinda e transformou a deglutição antropofágica proposta pelos tropicalistas em um novo referencial artístico e estético na cena pernambucana.
O grupo encontrou no Recife o ambiente propício à prática tropicalista por ser a cidade epicentro de outro movimento, o Armorial, criado pelo escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, responsável por uma oposição direta ao Tropicalismo. À primeira vista, o raciocínio parece contraditório, mas cabe perguntar: por que o Diversiones surgiria somente depois das primeiras manifestações armoriais? Ao que tudo indica, o grupo nasceu como resposta de uma parcela dos artistas e intelectuais da cidade ao pensamento armorial.
Paulo Vieira, professor e pesquisador de teatro da UFPB/UFBA, chega mesmo a afirmar, em artigo escrito para o programa do Projeto Nordestes, realizado pelo Sesc-Pompéia em 1999: “A cena pernambucana parece estar dividida entre duas heranças: a do Vivencial Diversiones [...] e a herança do Armorial [...]”. Nosso ensaio pretende investigar a filiação do Diversiones ao Tropicalismo, a fim de entender o tablado pernambucano contemporâneo.
Origens
A estética do Diversiones é herdeira indireta de Artaud, continuadora de uma radicalização proposta pelo Living Theatre (de quem parodia o nome), dialoga com o happening, com a performance e como toda a experimentação dos anos 60.
No Brasil, ela pretende ser a materialização local do Oficina, mas encontra pontos de convergência com a Revista e com os grupos de criação coletiva da década de 70, no Rio de Janeiro e em São Paulo (Asdrúbal trouxe o trombone, Ventoforte, etc.).
Sua temática francamente homoerótica está associada, por sua vez, à produção de grupos como o Teatro do Ridículo nos EUA, e Dzi Croquettes, no Brasil, sendo também reflexo do transformismo em voga na Revista carioca e paulista desde o show Les Girls, no final da década de 60.
O objetivo inicial do Diversiones é falar da realidade do jovem da periferia, esmagado pela miséria econômica, social, e pela opressão política da Ditadura Militar. Para isso, ele se utiliza da colagem teatral, lançando mão de textos de autores teatrais, cronistas, contistas e do noticiário da imprensa na criação de seus espetáculos.
Entre as colaborações mais prolíficas para o grupo está a parceria com Jomard Muniz de Britto, grande porta-voz da movimentação tropicalista no Recife. Foi Muniz de Britto quem, no mesmo ano de lançamento do CD Tropicália, 1968, assinou em Pernambuco o manifesto Porque somos e não somos tropicalistas. Dele, o grupo montou Nos abismos da pernambucália (1975), Sete fôlegos e Perna, pra que te quero? (1980). Embora o número pareça inexpressivo, junto com o escritor e cineasta o Diversiones produziu ainda 13 filmes em película super-8: Vivencial I (1974), Uma experiência didática: o corpo humano (1974), Toques (1975), Copo vazio (1976), O palhaço degolado (1977), Cheiro do povo (1978), Imitação da vida (1978), Inventário de um feudalismo cultural (1978), Jogos frutais frugais (1979), Jogos labiais libidinais (1979), Noturno em ré(cife) maior (1981), Outras cenas da vida brasileira (1982), Tieta do litoral (1982).
Foi graças a um desses trabalhos, O palhaço degolado, que teve início o conflito entre tropicalistas e armoriais, como nos faz ver Figueirôa (1994: 196-197):
“Em O palhaço degolado, a partir de um poema de Wilson Araújo de Souza, Jomard Muniz aborda criticamente dois expoentes da cultura pernambucana: o sociólogo Gilberto Freyre e o teatrólogo Ariano Suassuna, personalidades que, de tão respeitadas e idolatradas, tornaram-se figuras inatingíveis e inquestionáveis. [...] O filme ironizava principalmente Ariano Suassuna, que lançara o Movimento Armorial, de retorno às raízes medievais da cultura nordestina, como contestação ao tropicalismo, do qual Jomard era um dos expoentes no Nordeste”.
A cada novo espetáculo, o Diversiones desafiava a hegemonia armorial. Em 1975, quando da montagem de Nos abismos da pernambucália, o diretor Guilherme Coelho assumia, segundo Aguiar (s/d): “O espetáculo [...] é deliberadamente uma retomada crítica do trabalho iniciado por José Celso n´O Rei da Vela”.Um ano mais tarde o grupo montou Sobrados e mocambos, de Hermilo Borba Filho, figura querida pelos integrantes do Diversiones, pela isenção no trato com a cultura popular.
A montagem pode ser compreendida não somente como uma homenagem a Borba Filho, que havia morrido em junho do mesmo ano, mas ainda como uma afronta a Suassuna e ao encaminhamento que suas pesquisas sobre o popular tomaram.
Em 1977, o Diversiones encenou Viúva, porém honesta, de Nelson Rodrigues, e lançou o jornal-programa A Marreta. Nele, os articulistas pretendiam fazer uma síntese do que era a cultura pernambucana e brasileira, alvejando muitos de seus ícones. Desperta particular interesse o artigo intitulado Vivencial versus Armorial, no qual se tenta definir o momento cultural da cidade do Recife:
“até bem pouco tempo, recife [sic] só conhecia um movimento cultural, de tendências duvidosas, inclusive: o armorial. [...] por outro lado, aparecia em Olinda, outro movimento, pouco popular e menos cultural, no sentido tradicional era um grupo de teatro cuja base estava na expressão corporal do teatro e filmes super-8 [...]”.
Identificando o público-alvo dos dois movimentos, seus agentes produtores e encontrando pontos de interseção entre ambos, a publicação conclui:
“dos dois, não é preciso dizer que o armorial teve maior público e maior divulgação, mesmo porque acobertado por uma propaganda oficial, não desafiava nada, apenas tentava conciliar o inconciliável: dois tipos de cultura, emanados de classes diferentes. O melhor exemplo do fiasco foi o próprio ballet inventado por ariano, onde se tentou utilizar um bumba-meu-boi dentro de um quadro onde se previa a fusão do ballet clássico com a manifestação popular”.
No ano seguinte, o grupo montou Repúblicas independentes, darling, colagem de textos de Luís Fernando Veríssimo, Carlos Eduardo Novaes e Carlos Drummond de Andrade, que viajou pelo Brasil através do Circuito Mambembão/Mambembinho, programa criado pelo extinto Serviço Nacional de Teatro (SNT). Por seu aspecto tropicalista, aparentemente deslocado e tardio, o espetáculo chamou a atenção de alguns cronistas do sul. Armindo Blanco (1979) considerou-o “no mínimo insólito”. Já Fátima Saadi (1979) atestou: “o Vivencial [...] respira um ar de programa de auditório, de circo do interior. A forma escrachada, herança da revista, do Mambembe, serve a propósito de questionar o teatrão e incita o raciocínio por meio do riso”.
Com Notícias tropicais, de 1980, baseado em textos de João Silvério Trevisan e Eduardo Novaes, o Diversiones reafirmou sua síntese tropicalista, assumindo um visual cada vez mais próximo de Carmem Miranda, de um Brasil tipo exportação, cheio de frutas, vedetes, carnavalizado, sensual, exótico. No programa, o diretor retomava o discurso oswaldiano, definindo a proposta da encenação: “A peça isola três dos mais evidentes e dialéticos discursos do momento circunstancial-cultural brasileiro; o discurso da direita, o da esquerda e o discurso síntese da ‘coluna do meio’ que no momento antro-político-fágico é o único que consegue polarizar e sintetizar a ideologia e o prazer”.
Nesse mesmo ano, o Diversiones encenou ainda All star tapuias, com textos e direção de Antônio Cadengue, Carlos Bartolomeu e Guilherme Coelho. Assim como o Tropicalismo havia feito com a Antropofagiaoswaldiana, o grupo retomava, neste espetáculo, o Integralismo de Plínio Salgado, renovando-o, trazendo de volta seus conceitos e princípios, como forma de pastiche. Como a Antropofagia, o Integralismo era fruto da agitação da Semana de Arte Moderna. De certa forma, apesar de ser um estágio avançado do Movimento Verde-Amarelo de 1922, e não obstante seu caráter mais político que cultural, o Integralismo se opunha à Antropofagia. Sua retomada, portanto, significava não só uma imitação do procedimento tropicalista, mas ainda uma afronta a esse modelo, reiterando a noção de que o Diversiones jamais poderia ser rotulado, como pregavam os próprios tropicalistas.
Na mesma época, lançava-se também o Manifesto Quá-Quá-Quá, espécie de ideário síntese do Diversiones, no qual o grupo se colocava mais uma vez sobre diversas questões da cultura brasileira, de maneira fragmentada e dispersa. Dividido em três movimentos, o Quá-Quá-Quá trazia no título sua intenção fundamental: o deboche, contra todas as instituições e contra si mesmo. Numa tentativa de (in)definir um projeto artístico, uma postura política.
Com a abertura do café-teatro, em 1978, aconteceu ainda uma aproximação com o universo noturno dos travestis. Dessa fase foram os shows Bonecas falando para o mundo, espetáculo de variedades com elenco de transformistas, e diversos outros números individuais de dublagem e humorismo. Nesse último momento, as montagens de teor social perderam terreno e somente restaram os shows de variedades. Rolla skate (1981), Nós mulheres (1981) e a revista Oba nana... fruta do meio (1982) foram algumas das produções desse último período assinadas pelo diretor Américo Barreto, que também chegou a dirigir As criadas (1979), de Jean Genet, e Os filhos de Maria sociedade (1982), com crônicas de Carlos Eduardo Novaes e Luís Fernando Veríssimo.
Matrizes estéticas
Esse breve apanhado da produção vivencialesca nos leva de volta à reflexão de Paulo Vieira, segundo a qual o movimento teatral pernambucano estaria dividido entre a herança do Vivencial e do Armorial.
Para tentar equacionar o problema, recorreremos à noção de matriz estética, que
“[...] tem como base a idéia de que é possível definir-se uma origem social comum, que se constituiria, ao longo da história, numa família de formas culturais aparentadas, como se fossem ‘filhas de uma mesma mãe’, identificadas por sua características sensoriais e artísticas, portanto estéticas, tanto num sentido amplo de sensibilidade, quanto num sentido estrito, de criação e de compreensão do belo” (BIÃO, 2000:15).
Encontrar a matriz estética pernambucana seria tentar compreender o resultado da fusão das diversas matrizes de caráter lingüístico, histórico, religioso, geográfico, climático, étnico etc., que traduzem a pernambucanidade. Nosso objetivo não é o de tentar fazer um apanhado de todas essas matrizes, mas tão somente o de identificar algumas pistas para entender como se articulam, a partir delas, esses dois projetos artístico-culturais: Armorial e Tropicalismo (Pernambucália).
Para nós, Armorial e Pernambucália são movimentos que ajudam a compor o mosaico da matriz estética pernambucana. O primeiro articula o elemento conservador, defensivo dessa matriz, que pode ter origem na configuração geográfica do Recife, cheia de arrecifes que protegem o seu litoral, e nos movimentos históricos de resistência ao invasor estrangeiro, como se deu na Restauração Pernambucana (cf. BIÃO, 2000: 25-26). Já o segundo resgata o elemento cosmopolita, libertário, receptivo dessa cultura. Sua origem pode estar na própria miscigenação da população do estado (índios, negros e portugueses); no caráter de entreposto comercial e portuário do Recife; na condição do estado, receptor de boa parte dos intelectuais do país, tendo sido, inclusive, o primeiro curso de Direito do Brasil instalado em Olinda.
Embora redutora, essa esquematização nos ajuda a perceber a importância do Diversiones para a cultura pernambucana. É exatamente nessa bifurcação que ainda nos encontramos. Numa ponta, grupos que resgatam a raiz popular do Nordeste. Na outra extremidade, encenadores e companhias que tentam apagar as fronteiras entre local/universal, popular/erudito, urbano/rural, resgatando a idéia de síntese lançada pelo Diversiones.
Para nós, o Diversiones foi um canteiro de obras a partir do qual se construiu uma nova estrada, por onde escoa parte da criação artística pernambucana até hoje, aquela que articula a matriz plural do estado.
Mesmo não dispondo das mesmas armas, o Diversiones conseguiu encampar uma batalha contra o Armorial, não permitindo que a força do marginal silenciasse. Sua produção tomou ramificações surpreendentes. Para um observador atento, ela ecoa no Manguebeat e em outras manifestações contemporâneas que se propõem a fazer uma nova síntese de nossa cultura. como garante o escritor João Silvério Trevisan, em depoimento:
“A repercussão do Vivencial na cena brasileira foi mínima, como era de se esperar, por não se tratar de um grupo folclórico do Nordeste, portanto, desviante das expectativas nacionais. Mas acho que foi muito importante para o Recife. Não creio que seja possível pensar em movimentos como o Manguebeat sem remeter à existência transgressora do Vivencial. Ele consagrou uma maneira de fazer arte recifense, com todo o lixo que tinha ao seu redor, literalmente. É o que as novas gerações perseguem hoje no Nordeste. Vide os Textículos de Mary, por exemplo”.
Resgatar a história do Diversiones é, portanto, de suma importância para compreender o panorama da produção teatral e cultural pernambucana, nordestina e brasileira.

Referências
AGUIAR, Tonico. As perguntas... e as respostas. Jornal do Commecio, Recife, s/d, Teatro.BIÃO, Armindo. Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade. In: Temas em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo: Anablume: Salvador: GIPE-CIT, 2000.BLANCO, Armindo. Repúblicas camaleônicas. A Notícia. Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1979.FIGUEIRÔA, Alexandre. O cinema super 8 em Pernambuco: do lazer doméstico à resistência cultural. Recife: Edições Fundarpe, 1994. p.196-197SAADI, Fátima. De Maurício de Nassau à geléia tropical. Ensaio, nº 01, Rio de Janeiro, 1979, p.24-27.TELES, José. Do frevo ao Manguebeat. São Paulo: Ed. 34, 2000.TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2002.

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